OS CONTRABANDISTAS

10/12/21

AINARA DÍAZ GEADA, Professora da Faculdade de Enfermagem na USC

Sinto-me privilegiada por partilhar conhecimentos e experiências com o estudantado da USC

 

Ainara Díaz Geada (Nois - Foz, 1992) está titulada em Enfermagem pela Universidade de Santiago de Compostela (2014). Desde aquela altura trabalhou como enfermeira no Hospital da Marinha e logo na Área sanitária Santiago-Barbança. Após um mestrado em Epidemiologia e saúde pública na USC (2016), realizou a tese de doutoramento que leva por título “Desigualdades em saúde no estudantado de Ensino Secundário Obrigatório duma povoaçom multicultural (Burela, Lugo)”

Com esta integrante da Brassica Rapa -a famosa "charanga feminista" que anima as festas em terras galegas e portuguesas- falamos de diversos temas para partilhar com a audiência do Portal Galego da Língua.

Ainara Geada tem identidade galega desde os primeiros meses de vida.

Sempre fui galego-falante. Tive a sorte de me criar numa família que me transmitiu o nosso idioma desde o berço e conseguim mantê-lo também no âmbito escolar e com as minhas amizades. Sempre foi a língua com que me relacionei. Com o passar dos anos, continuei a usá-la normalmente, tanto na etapa de formação e ativismo universitário, quanto posteriormente desenvolvendo as atividades profissionais.

Aluna da matéria específica de Língua Portuguesa desde os 16 anos...

Foi em Bacharelato, ao começar os meus estudos no IES Perdouro. Ao ir escolher as matérias para o 1º curso, lembro a grata surpresa: comprovei de primeira mão que existia tal oportunidade. Não duvidei da escolha. Foi uma grande oportunidade o poder avançar no conhecimento não só da língua mas também de muitas outras aprendizagens vitais da mão do meu professorado.

Agora mesmo domina um mínimo de três línguas.

A minha língua nativa -e a que uso a diário- é o galego-português. Tenho também nível de nativa em espanhol e um nível intermeio em inglês. Durante um par de anos formei-me em Língua de Signos Espanhola e gostaria muito de retomar esse estudo. Também tive a oportunidade de morar uns meses na Catalunya e de estudar catalão. Por diante ficam pendentes imensas aprendizagens.

Conte-nos mais a respeito da sua experiência profissional.

Desde que terminei a formação como enfermeira na USC, por volta de 2014, comecei a estudar para a especialidade de Enfermagem (EIR). Em paralelo, trabalhava no Hospital Público da Marinha (Burela). Os conhecimentos que fui adquirindo e a reflexão sobre a realidade que me rodeava fizeram que mudasse de caminho e decidi formar-me no mestrado de Epidemiologia e Saúde Pública da USC.

Ao completar os estudos, iniciei a fase do Doutoramento da mão do professor Francisco Caamaño. Nesta investigação procurava refletir sobre a influência das desigualdades sociais na saúde das populações. Olhando o nosso próprio contexto, e inspirada pelo trabalho da referente Luzia Oca, comecei a estudar a influência destas desigualdades nas condutas em saúde da população adolescente de Burela. A diversidade populacional, enquadrada no contexto galego da atualidade, conforma uma realidade paradigmática que nos imprimiu a necessidade de questionar metodologias e nos mergulhou em novos horizontes.

Nesta altura, mudei-me para Compostela e com vontade de compaginar melhor ambas as atividades (a enfermagem clínica e a atividade investigadora). Não foi uma etapa doada, sobretudo dadas as condições laborais das enfermeiras eventuais no país, mas o apoio da minha gente e os aços de finalizar um projeto que me parecia muito necessário, permitiram-me continuar no caminho.

Em 2019 incorporei-me à docência universitária na USC. Decidi provar sorte com uma nova experiência. Dali a uns meses estalou a pandemia e imparti aulas por vez primeira em pleno confinamento. No verão de 2020 pude, ao fim, defender a tese e na atualidade continuo a ministrar  aulas de diferente matérias na Faculdade de Enfermagem de Compostela.

Quais são as conclusões do seu trabalho?

Uma das principais conclusões que obtivemos nesta investigação foi que o consumo de álcool, tabaco e cânabis aumentava com a maior disponibilidade económica. O estudantado migrante não é um grupo de risco para o consumo destas substâncias. No entanto, a difusão dos resultados deste estudo constituem uma oportunidade para eliminar preconceitos.

Uma segunda conclusão foi que existe associação entre o estado anímico negativo, o consumo de cânabis e o facto de ter sofrido bullying na população estudada. A baixa perceção de risco do cânabis virou num fator duplo de perigo ao se associar com o maior consumo e o pior estado anímico.

-Como foram os resultados da comparativa com a situação do estudantado da Catalunya Central?

O nível académico foi mais desigual entre estudantes da Catalunya. A probabilidade de que declarassem ter fumado tabaco duplicou-se entre adolescentes catalães a respeito dos adolescentes da Galiza. A população adolescente catalã referiu estado de ânimo negativo em maior medida do que a população adolescente galega, mália ter mostrado menor risco de referir ter sofrido bullying.

Estes resultados evidenciam a necessidade de afundar em pesquisas que permitam clarificar a relação causal entre o consumo de substâncias psicoativas, o estado anímico e o bullying, tendo em conta as desigualdades sociais. Adverte-se a necessidade de incrementar os estudos em populações de menor tamanho, que foram pouco investigadas. Além disso, dever-se-iam tecer intervenções que abordassem estas problemáticas, dotando as pessoas de autonomia para poderem participar responsavelmente da sua saúde.

Cuido que estas conclusões são verdadeiramente relevantes para o nosso contexto à hora de nos ajudar a compreendermo-nos melhor e para superarmos barreiras tristemente habituais.

Apesar de que a maioria do estudantado que participou deste estudo já não está nos institutos de Burela, teria sido muito útil a reflexão em comum sobre os resultados desta investigação.

Como está sendo a sua etapa de docente na USC?

Está sendo uma etapa muito enriquecedora e surpreendente. Para mim era necessário experimentar este novo rol profissional e vital. Procuro que este labor de suma responsabilidade seja minimamente útil para quem me tem à frente e procura adquirir novas aprendizagens. Guardo na lembrança a minha própria experiência e decato-me da importância de implicar-se ativamente. Na Universidade dou aulas a mais de 200 estudantes diferentes por curso e isto não facilita o nosso labor. Mas como enfermeira sinto-me privilegiada de partilhar com o estudantado conhecimentos e experiências e procuro incidir na importância de pôr o cuidado no centro. Também o pensamento crítico, o questionamento do “estabelecido” e a necessidade do empoderamento hoje e no futuro.