OS CONTRABANDISTAS

15/11/21

JOSEPH GHANIME: “Sou do clube dos neo falantes”

Professor da EOI de Ferrol começou a falar galego com alguns amigos e agora converteu-o na língua básica da comunicação familiar

 
Érica Gomes Mendes

Nascido em Santiago de Compostela (1973), Joseph Ghanime cresceu na cidade da Corunha. É formado em Tradução e Interpretação (das línguas inglesa e portuguesa) pela Universidade de Vigo; e em Filologia Germânica (Inglês) e Filologia Hispánica, pela Universidade de Santiago de Compostela. Completou um mestrado em Estudos Medievais com um trabalho final sobre as Tençons medievais galego-portuguesas.

Tradutor independente por aproximadamente dois anos, é professor das Escolas Oficiais de Idiomas desde 2006 e tem trabalhado nas de Pontevedra, Lugo, Santiago de Compostela e Badajoz. Atualmente está na de Ferrol.

  


Professor Ghanime, queremos conhecer o seu perfil linguístico. É neo ou paleo falante?

A minha língua materna é o castelhano, mas desde bem cedo tive curiosidade e algum contacto com o galego na terra de origem do meu avô, no Concelho de Gontim de Palhares (Lugo). Foi com ele que comecei a falar algo de galego e a aprender de cor alguns poemas do Curros Enríquez.

Ora bem, sou do clube dos neo falantes. Na Corunha, a minha língua veicular foi o castelhano durante a infância e boa parte da mocidade. A uma dada altura comecei a falar galego com alguns amigos, e progressiva, mas lentamente, o galego foi-se tornando a minha língua de uso habitual. Galego é  também a língua que falamos habitualmente em casa e a primeira adquirida por nossas filhas. Então, será que elas pertencem ao clube neo ou do clube paleo? Bom, afortunadamente a realidade sempre é mais complexa do que as nossas etiquetas.


 Em que momento começou com o estudo da Língua Portuguesa? Durante a etapa dos estudos de Filologia em Compostela ou de Tradução em Vigo?


Desde a infância lembro-me de ter tido curiosidade e interesse em Portugal, a minha avó materna era de Tui. De maneira autónoma, nalgum momento do ensino secundário, comecei a comprar literatura em português, nomeadamente na Livraria Couceiro, na Corunha. Lembro-me concretamente das edições da Europa-América dos Sonetos de Antero de Quental e dos poemas do Álvaro de Campos. Numa da primeiras viagens que fiz a Portugal, comprei em Coimbra o álbum Contentores dos Xutos e Pontapés, e partir daí o interesse na música portuguesa nunca mais parou. Aos Xutos seguiram-se os GNR, os Madredeus, e por aí fora.

Quanto ao estudo formal da língua, no curso de Filologia Hispânica, em Compostela, frequentei as cadeiras de Língua Portuguesa I e II. Mais tarde, na dissertação final do Programa de Estudos Medievais da USC debrucei-me sobre as tenzons medieviais galego-portuguesas, num trabalho orientado pela professora Mercedes Brea, a quem fiquei muito grato pela inestimável ajuda.

Ora bem, foi ao inscrever-me no segundo ciclo do curso de Tradução e Interpretação, na Universidade de Vigo, que comecei a aprofundar com maior paixão na língua. Sendo formado em inglês e português, foi por esta língua que decidi enveredar do ponto de vista profissional. Gosto muito dos dois idiomas, mas a maré do português puxava por mim com uma força especial. Como trabalho final da licenciatura, traduzi a primeira parte de A estrada de Wigan Pier de George-Orwell para o galego-português, na proposta ortográfica da Agal. Fique aqui a minha gratidão para os professores Carlos Garrido e Óscar Díaz Fouces, fundamentais na minha formação nesta etapa.


 Nesta altura da sua vida, em quantas línguas se desenvolve com fluência?


Galego/português, castelhano e inglês são as línguas em que tenho tido mais horas de voo. Há muitos anos que estudo francês e alemão, cativam-me as duas e leio habitualmente nelas, mas da minha fluência teriam que julgar outros, pois não encontro muitas ocasiões para falá-las. Aprendi romeno por três anos na EOI de Madrid – apesar das minhas muitas limitações nessa língua, tenho um fraquinho por ela e tenciono retomar o seu estudo. Por acaso, havendo bastantes romenos na Galiza, não se compreende que seja tão difícil receber formação no idioma. Por fim, agora comecei a aprender italiano, com grande entusiasmo do meu lado nestes primeiros passos.

Vejo-me antes como estudante do que como professor de língua. Estudo línguas desde a mocidade, na atualidade sou aluno da EOI da Corunha, e provavelmente continuarei a estudar idiomas quando for reformado. Por isso, aprender línguas tem a ver com aquilo que sou, e ensinar com aquilo que faço. É mais: entendo o próprio ensino da língua como indissociável da sua aprendizagem. Antes de levar um texto ou um áudio para as aulas reparo nos pormenores e tiro as minhas próprias anotações. Por simples que uma amostra de língua pareça, sempre há algum detalhe, alguma maneira de exprimir alguma coisa, em que não tínhamos reparado. Esta instrução contínua e o contacto com os alunos é o que mais prezo do meu trabalho.

Todavia, preciso de fazer um grande esforço para aprender idiomas. O que me guia é a determinação e a paciência ― o meu feitio é água mole a bater em pedra dura, feijoada de lento cozimento e não fast-food. O percurso cativa-me mais do que a estação de chegada, as imperfeições com que falo e escrevo não me desencorajam, essas falhas são como a pimenta que dá sabor à aprendizagem.

Gostaria de ser capaz de transmitir esta ideia: aprender uma língua é sobretudo conviver com ela e com os seus falantes ― a começar, numa sala de aula, pelos próprios colegas de turma que também partem nessa viagem. Acredito que neste caminho uma pessoa deve comparar-se apenas consigo própria e perguntar-se se o navio continua a avançar a caminho da Terranova, em vez de frustrar-se por não ter um desempenho perfeito.


Quando começou a sua experiência profissional?


Comecei a trabalhar como professor de EOI em 2006. Anteriormente tinha realizado diversos trabalhos: assistente de cozinha na Islândia, tradutor de inglês e português, professor de inglês em centros privados, localizador de software numa empresa da área da tecnologia, professor de espanhol na Irlanda e carteiro por um breve período.



Qual diferença tem observado nas EOI em que trabalhou?


De todas elas tenho ótimas recordações. A primeira EOI em que trabalhei foi a de Ponte Vedra, por cinco meses. Ensinar uma língua não é o mesmo que estudá-la ou traduzi-la. Por isso, o esforço de adaptação e aprendizagem foi o que marcou este período. Os alunos foram muito compreensivos com a minha inexperiência naquela altura, ao que poderá ter ajudado o entusiasmo com que me dei à tarefa.

Lecionei por quatro anos na EOI de Lugo, de que lembro com muito carinho. Para além de continuar a aprender muito, precisei de criar bastantes materiais, uma vez que os livros disponíveis não iam ao encontro de todas as necessidades didáticas, o que de facto continua a acontecer.

Além disso, o departamento desenvolveu uma atividade cultural intensa, que acabou por dar os seus frutos e ter alguma visibilidade na cidade. A resposta dos estudantes foi espetacular, bem como o compromisso de todos/a os/as colegas docentes. Sem muitas responsabilidades familiares, foi uma época em que me dediquei de forma quase exclusiva à escola e à vida associativa relacionada com o português. Foi também a primeira vez que dinamizei um clube de leitura, o Tuga-Lugo-Lendo.


Outro dos lugares de "peregrinação" foi Santiago de Compostela...


Na EOI de Santiago de Compostela lecionei por quatro anos. O número de inscritos em português costuma ser alto nesta escola. Com turmas mais numerosas, centrei-me sobretudo na parte didática e na direção do departamento, que assumi por um par de anos. A atividade cultural do departamento (viagens, concertos, clube de leitura, idas ao teatro) também era intensa. Em Compostela a própria cidade também tem uma oferta rica nesse sentido. Por isso, a meu ver, o foco da maioria dos alunos era mesmo a parte académica. O ritmo de vida também me pareceu mais acelerado do que em Lugo ou Ferrol, onde dou aulas agora.

Na EOI de Compostela tive ainda a sorte de viver de perto a gênese do projeto Arritmar, o concurso de música e poesia em galego e português. O projeto nasceu graças à iniciativa do professor Gonzalo Constenla e à determinação da equipa que desde logo abraçou a ideia. O Arritmar goza de ótima saúde, tanto em termos de participação quanto de difusão. Na medida das minhas possibilidades, continuo a colaborar todos os anos no projeto, o qual aliás me mantém em contacto com a escola.

Tenho também muitas saudades do Clube de Leitura em português da EOI Compostela. O clube continua vivo, sendo agora independente, e com o nome de Salta-Pocinhas,graças à determinação dos/das "clubistas".


Compostela não foi o final do caminho...


Logo a seguir de Compostela passei três anos na EOI de Badajoz, para a qual tive que pedir uma transferência temporária por razões de conciliação familiar. Esta mudança também foi uma experiência inesquecível.

Em Badajoz lecionei os níveis básicos, o que me permitiu observar as diferenças e semelhanças entre galegos e estremenhos nas primeiras fases de aprendizagem. Como é sabido, os falantes de galego partem com vantagens linguísticas na hora de aprender português. Por exemplo, não é preciso parar-se muito nos artigos, possessivos, contrações e outros pormenores que causam dificuldade aos hispanofalantes no início.

Porém, devo dizer que na Estremadura (espanhola) observei uma grande motivação para aprender português. Os alunos completavam os estudos com uma muito boa competência linguística, pois sobretudo nos níveis altos eram conscientes de que precisavam de se esforçar muito. Há que esclarecer que a organização dos estudos lá é diferente da nossa, porque o percurso normal do A2 ao C1 é feito em oito anos, enquanto na Galiza se realiza em quatro. Fique aqui também a minha saudação para os colegas docentes estremenhos e a Associação de Professores de Português da Extremadura.

Da EOI de Badajoz também me seduziu a magia do local. Apesar de não ser muito funcional, a sede da escola é um edifício histórico com grande capacidade evocadora. De algumas salas de aula, se nos subíssemos às cadeiras, dava para ver a cidade de Elvas no Alto Alentejo. Também são para nunca mais esquecer, a Alcáçova e o Guadiana, ali ao pé da escola; o burburinho da guitarras da associação local de flamenco; a repartição em que Castelão trabalhara, também lá pertinho, na Plaza de la Soledad; e inclusive algum fantasma que supostamente passava as noites numa das salas de aula do estabelecimento de ensino.

Neste período também tive a sorte de conhecer muito de perto Elvas e o Alentejo. As minhas filhas frequentaram o infantário e a escola primária lá. Essa experiência de vida quotidiana em Portugal foi muito enriquecedora para a família toda.


Agora está destinado em Ferrol


Atualmente estou a trabalhar na EOI de Ferrol, na qual passei todo o período da pandemia. Desta escola quero destacar, mais uma vez, tudo o que tenho aprendido dos alunos, aos quais estou muito grato. A frequência de aulas é muito regular, sobretudo nos níveis mais altos, e todas as atividades culturais que se propõem - e que pararam, obviamente, com a pandemia - têm bom acolhimento de público. Também quero destacar o bom funcionamento e vitalidade da biblioteca. E até a beleza da cidade, que não raro me traz o som da sirene de algum navio às 9h00 da manhã, quando abro a janela para arejar bem a sala de aula.

Depois de ter falado das EOIs em que trabalhei, queria referir aquelas de que fui estudante: a EOI da Corunha (na qual continuo a estudar) e a EOI Jesus Maestro de Madrid.


Qual é o perfil das pessoas matriculadas?

Afortunadamente cada vez mais variado. De forma geral, falaria em motivações de dois tipos: por um lado, as razões "pragmáticas", no sentido de terem a ver com os estudos ou carreira profissional; e por outro lado, as norteadas pela simples vontade de aprender ou o enriquecimento pessoal.

No primeiro grupo encontramos estudantes que precisam de certidões de um dado nível ou querem fazer um Erasmus. Ou então, trabalhadores que usam o português nos seus empregos ou precisam de completar horas de formação.

Na segunda categoria, há pessoas que chegam ao português através do interesse na cultura galega, e outros que simplesmente gostam de aprender línguas e querem debruçar-se sobre mais uma. Há ainda o perfil das pessoas reformadas com vontade de continuar a aprender.

Nalguns casos também influi a vontade de socialização. O interessante é que as pessoas que vêm por razões, por assim dizer, pragmáticas, acabam por gostar da língua, e quem vem por interesses culturais acaba por ver também a parte prática. E quase todos acabam por trazer, ou por fazer, algum amigo; ou até começar algum namoro — mas isto último é que não podemos garantir a quem bate à nossa porta.


Além do trabalho na EOI colabora com alguma entidade social que promove o nosso idioma?


Sou sócio de diversas entidades relacionadas com a língua, mas atualmente o meu contributo é escasso. As associações em que há algum tempo tive um papel mais ativo foram a DPG (Docentes de Português na Galiza), a Agal, e quando estava em Lugo, a Cultura do País. Também andei envolvido na criação de diversos clubes de leitura.

Continuo a ter em grande apreço todas as entidades referidas, orgulhando-me do trabalho que elas realizam. No entanto, o meu contributo nos últimos anos tem sido apenas pontual. Esta maior distância da vida associativa deve-se a circunstâncias pessoais e laborais, bem como à necessidade sentida de dedicar tempo a aprofundar noutras línguas. Também, confesso, à minha incapacidade para gerir o excesso de comunicação por vias digitais. Chegou uma altura em que precisava mesmo de reduzir o tempo passado à frente dos ecrãs.

2 comentários:

  1. Parabéns pela entrevista e um grande abraço ao colega Joseph aqui de Sao Paulo!

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  2. Muito obrigado, Xoán! O Joseph também trabalhou em São Paulo? Mais do que um professor... é um super-homem!!

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