Bernardo Penabade
À falta de quinze minutos, alguns instrumentistas da Banda
do Landro tomam posições. Soam os primeiros acordes como efeito-chamada a um
exército de músicos que desce pela rua do Teatro. O público das cadeiras está
já rodeado por mais gente que terá de seguir de pé o concerto.
Com pontualidade, às dez da noite começa o
espetáculo. Entra Carlos Timiraos, Diretor da Banda do Landro, e o público
aplaude protocolarmente; abre o repertório María, la portuguesa em versão instrumental.
Só oito minutos depois, Carlos desce do palco. Há um silêncio total. Imediatamente
sobe novamente, desta vez acompanhado pela artista principal, elegantíssima, que
traz um adufe no peito, como se for necessária proteção. O tímido “boa noite”
quase não se ouve. Mas o que sim se ouve são os primeiros versos: “Não sei, não sabe ninguém/ Por
que canto o fado /Neste tom magoado / De dor e de pranto” e nós pensamos que foi Deus
quem nos pôs nos ouvidos esta música da Amália interpretada pela Ana Laíns.
Algo assim passa pela cabeça do músico anfitrião, que tem o sorriso no rosto e que
a convidada é capaz de ler. Isso dá-lhe força. A resposta do público à pergunta
de se fala em português também. Em pouco tempo, a timidez desaparece e aflora a
primeira brincadeira: “Se não gostarem, finjam que gostam”.
Como é ingratidão falar mal do vinho, mais uma vez a cantora
falou e cantou bem; o público manteve-se em equilíbrio,
as leis da física não falharam, e começaram as primeiras palmas de
acompanhamento. Com esse estímulo, antes de nos levar pela Rua do Capelão, a
artista fez discurso pedagógico desta vez para nos falar da Severa, a quem
tributou homenagem.
Duas
versões instrumentais –“o Sacristão de Coimbra”, popularizado por Pilocha e por
Maria Manuela e Miguel; e o “Havemos de ir a Viana”- serviram de união entre o
primeiro e o segundo bloco do repertório. “Posso dizer que já somos amigos?” perguntou
a estrela da noite. Imediatamente a seguir chamou para o palco o Paulo Loureiro.
Após uma renovada e lindíssima declaração de amor, novas palavras pedagógicas:
fado boémio vs fado aristocrático. Foi o prelúdio à interpretação do “Fado das
horas”, da Mª Teresa de Noronha, e à entrada de dois novos músicos, o baterista-percussionista
João Coelho e o guitarrista Bruno Chaveiro, recebidos com carinho. Após a interpretação
da “Canção do Mar”, era total a sintonia entre o palco e os centenares de almas
que povoavam a praça. Nesse momento, a “Cantora Colorida” falou do Zeca e
cantou o “Vejam bem” e a “Moda do Entrudo” em Viveiro, terra de gaivotas onde o
“entrudo chocalheiro” continua bem vivo. O adufe deixou de ser ferramenta de
defesa. Ficava bem às claras que a gente madura participava com entusiasmo e que
só o escritor Nicomedes Pastor Díaz ficava impassível na sua estátua. Com a “Canção
de embalar” não chegamos a adormecer, mas por momentos subimos até o quarto ou
quinto céu, desde onde ouvimos as duas únicas músicas próprias da discografia
da Ana Laíns: a “Verdade da mentira” (visão satírica dos nossos tempos) e os “Quatro
caminhos”. Em comunhão absoluta com o ambiente, a rainha do palco descalçou-se
( disse que “os sapatos são a mentira”), sentou-se na beira, confessou que a maquilhagem
estava indo embora e brincou com uma voz do público que pedia a “María, la
portuguesa”: “Já a tocaram, querida; não estavas atenta”.
Estávamos quase no fim. Só mais uma explicação:
a história da “Mãe preta” e do “Barco negro”. Era o momento do diálogo a três: a
viola do Bruno, a percussão do João e a voz da Ana. Minutos sublimes. Quando o público
grita a coro “Nunca mais à escravatura”, apagam-se as luzes do cenário e surgem
luzes brancas a iluminarem os rostos da gente. É o “momento Grândola”, em versão
originalíssima. A Ana grita vivas a Portugal e à Galiza e o público, em pé, aplaude
prolongadamente.
O concerto foi um triunfo da cultura ventureira. Sem quase publicidade, a chamada da música portuguesa funcionou. Reuniu-se muito público e criou-se um ambiente excelente. O melhor de tudo: a comunicação perfeita entre a artista e as duas bandas: a sua e a do Landro. Foi realmente maravilhoso comprovar como se entendem musicalmente a mestra Socorro Giz, com 4 decénios de experiência na banda, e o virtuoso Martín Tojeiro com o Vítor López, de só 13 anos, que acaba de entrar na formação. Um dez também para o Carlos Timiraos, extraordinário docente da cultura musical de base.
Seria magnífico que este concerto se repetisse noutros
lugares: no Auditório da Galiza, em Santiago de Compostela; no Gustavo Freire,
em Lugo; ou mesmo em Viana do Castelo ou Chaves. Da mesma maneira, confiamos em
que o modelo se repita noutras localidades com bandas populares (Foz, Vilalva, Sober...)
e que algum desses concertos seja retransmitido ao vivo pela TVG ou gravado para
uma emissão posterior.
A matéria-prima é excelente e a demanda existe.
Bruno Chaveiro, Paulo Loureiro, João Coelho e Ana Laíns no momento da interpretação do Grândola
Despedida das duas bandas |
Encontro de Loureiros em Viveiro. Finalizado o concerto, Maria Loureiro (Presidenta da Cámara Municipal) e Paulo Loureiro cumprimentaram-se. |
Ana Laíns com Maria e Paulo Loureiro. Os rostos de alegria patenteiam que tudo tinha corrido muito bem. |
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